Deísmo
Uma das notas características do Iluminismo e dos iluministas é a secularização da razão. Com o slogan “Atreva-se a pensar”, “Abandone a menoridade”, o Iluminismo rompe o equilíbrio entre fé e razão e sua tensão dialética. Mediante um processo redutivo da fé ao racional, realiza o postulado e a exigência da progressiva e total secularização da vida humana mediante a dessacralização.
A concepção religioso-teológica do mundo dominante no Ocidente até o séc. XVII mantinha-se e elevava-se sobre a relação homem-Deus. Deus constitui o centro, origem e princípio de determinação do sentido do mundo. Temos assim o teocentrismo. Da mesma maneira, o senti-do da humanidade e da história é estabelecido e regido por Deus providente (providência). Finalmente, o destino último do homem, o fim da providência e o “eschaton” da história se somam na salvação sobrenatural e eterna do homem, realizada por e com a graça de Deus: Redenção divina, religião positiva, cristianismo.
O Iluminismo ou “razão secularizada” dá uma interpretação radicalmente oposta a tais questões. No teocentrismo, estarão a natureza e o homem como centro e ponto de referência. A providência será substituída pelo progresso contínuo e sem limites da razão e da humanidade. Na redenção sobrenatural — religião revelada, cristianismo histórico — impor-se-á a salvação da situação infeliz do homem, que ele próprio deverá procurar com o trabalho e na história. Temos, pois, uma Redenção horizontal, no marco exclusivo do tempo e da história.
Essa secularização da razão mantém, no entanto, o reconhecimento do divino, assim como uma peculiar interpretação da religião. É necessário que a verdadeira religião seja racional: “Enquanto não nos guiemos pela razão — diz Locke —, disputaremos em vão, e em vão tentaremos convencer-nos mutuamente em assuntos da religião”. Nasce assim o conceito de religião natural e de “deísmo”. Somente é verdadeira a religião da razão. A razão é a norma e o critério último da verdade e da religião.
À religião natural, proclamada pelo Iluminismo, vai unida uma luta contra os milagres e as profecias, os ritos e os dogmas. E, principalmente, se fará uma crítica implacável da religião positiva, do cristianismo estabelecido no Ocidente. Em nome da “religião natural” se derrubarão as barreiras entre a religião e a moral. A religião consistirá no conhecimento dos deveres ou mandatos morais, e sua atividade ou exteriorização não será mais do que a ação simplesmente ética. Puro moralismo, baseado nas palavras de Voltaire: “Entendo por religião natural os princípios da moralidade comuns à espécie humana” (Dic. de filósofos).
O “deísmo” expressa as exigências da razão iluminada e concretiza os princípios da religião natural. O conceito de “deísmo” foi moldado pelos ingleses John Toland em sua obra Cristianismo sem mistérios e M. Tindal, em O cristianismo tão velho como a criação. Foi, em especial, *Voltaire quem formulou as notas ou teses gerais do deísmo. Reduzidas a sua mínima expressão, são as seguintes: a) Deus existe e é autor do mundo. b) Não é possível determinar a natureza e os atributos de Deus. c) Deus não criou o mundo livremente, mas por necessidade. Em conseqüência, Deus não é responsável pelo mal. d) Não há lugar para a providência divina, pois a ação de Deus no mundo termina em sua criação. e) O deísmo é cético diante da outra vida, seus prêmios e castigos.
De acordo com o que acabamos de ver, o deísmo baseia-se na razão teórica e obedece a uma colocação estritamente intelectual. Também se baseia na razão prática, já que identifica a religião natural com os mandatos morais. Nega o caráter sobrenatural da religião ignorando, portanto, o caráter positivo e sobrenatural do cristianismo. A luta ideológica contra este marca, de alguma forma, toda a filosofia, a ciência, a educação, a política e a literatura surgida desde o séc. XVIII até os nossos dias. Os pensadores cristãos, daqui por diante, terão de apresentar e defender a identidade própria do cristianismo frente à crítica, frente à ciência, frente à secularização da vida.
BIBLIOGRAFIA: D. Hume, Diálogos sobre religião natural; K. E. Weger, La crítica religiosa en los tres últimos siglos. Barcelona 1986; Jean-Jacques Rousseau, Escritos religiosos; John Locke, A racionalidade do cristianismo Madrid-1977.
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